O INTOCÁVEL
Não gostar de Chico não faz dele um monstro, mas também não deveria me tornar um
Confesso, com todo o peso de minha sinceridade não solicitada, que não entendo o fascínio coletivo por Chico Buarque. Não falo da admiração legítima pela obra de um artista talentoso — algo que compreendo, embora não compartilhe —, mas da idolatria messiânica que o cerca. E quando digo “não entendo”, não me refiro àquela forma educada de dizer “respeito, mas não gosto”. Não. Falo de um genuíno não-entendimento.
Ouvi seus discos. Li seus livros. Assisti a uma peça. E no final pensei: “Ok, isso é bom.” Mas daí a sair erguendo altar, acendendo vela e chamando de "o maior escritor da língua portuguesa", existe uma longa ponte que eu, honestamente, não estou disposto a atravessar.
Há ao redor de Chico algo que ultrapassa o apreço artístico. Seus fãs não o admiram, eles o canonizam. São devotos, missionários de uma seita em que qualquer crítica é, no mínimo, blasfêmia. Experimente dizer que você não gosta de Chico em uma roda de pessoas que se julgam inteligentes. Vai parecer que você declarou guerra ao Haiti ou que é a favor de cancelar o oxigênio. “Você não gosta de Chico?! Como assim?!”, dizem com a expressão de quem acaba de descobrir que você tem o hábito de morder criancinhas.
Essa necessidade de transformá-lo no supra-sumo da genialidade humana, no ápice da cultura ocidental, me parece desproporcional. Gosto do Tim Maia, por exemplo. A voz, a musicalidade, o talento bruto. E ninguém ergue santuário para ele. Ninguém diz que Tim Maia é “o maior escritor de almas que a humanidade já viu”. As pessoas apenas cantam e dançam. E isso, por si só, me parece um elogio mais honesto.
Chico não canta bem. Sua voz é uma espécie de lamento bonito, não passa disso. Não é um canto, é um sussurro com ritmo. Quanto ao violão... bom, ele segura o instrumento com a elegância de quem viveu em Ipanema e teve aula de música entre uma taça de vinho e outra, mas não vejo nada de genial ali. Conheço violonistas que tocam em barzinho que fazem coisas muito mais interessantes e ainda cantam afinados.
Agora, experimente dizer isso em voz alta. Um silêncio carregado cairá sobre a sala como um véu de luto. As pessoas ficam cegas. Incapazes de aceitar que alguém, em pleno uso das faculdades mentais, possa não ver ali a perfeição absoluta. A cada respiração de Chico, uma dissertação é escrita. A cada nota cantada, um novo ciclo lunar é iniciado. Ele é uma espécie de oráculo progressista, um Buda de Ipanema, um Cristo Redentor de camisa de linho. E eu? Eu fico do lado de fora, observando a romaria passar, com o mesmo entusiasmo de quem assiste a um seminário sobre os benefícios da couve.
Tive uma conversa recentemente com uma colega de trabalho. O assunto começou leve, literatura brasileira, e ela, visivelmente emocionada, interrompeu qualquer menção a nomes como Machado de Assis, Drummond ou Guimarães Rosa para soltar:
“Nunca existiu alguém que soubesse usar as palavras como o Chico Buarque!”
Respondi, sem intenção de provocar:
“Ah, acho James Joyce, Roberto Bolaño e Clarice Lispector mais interessantes nesse quesito.”
Ela me olhou como se eu tivesse arrancado um crucifixo do peito e cuspido nele.
“Você tá louco! Esses todos aí são lixo perto de uma única frase escrita por Chico Buarque!”
Não sei se ela realmente leu Joyce ou Clarice Linspector. Mas sei que, para defender Chico, ela teria pisoteado a biblioteca de Alexandria inteira.
Esse tipo de devoção cega me incomoda. Porque ela não vem de uma análise, vem de uma fé. E discutir com fé é sempre uma tarefa inglória. Você não rebate um dogma. Você apenas se afasta dele, para não acabar enforcado em praça pública.
É bom deixar claro que eu não sou um inimigo da MPB. Não sou um entusiasta, mas acho que ela tem suas virtudes. Há, ali, um poder real que transcende os limites da crítica, da ética e até mesmo da lei. Porque se tem algo que a MPB ensina é que, com a harmonia certa e uma letra poética, absolutamente tudo pode ser ignorado ou perdoado. A tal ponto que um sujeito pode, aos 40 anos, ter relações sexuais com uma menina de 13 e ainda assim ser lembrado como uma entidade superior, envolta na névoa mística da transgressão libertária. A biografia vira mito e o mito é blindado pela trilha sonora. Toca um violão e pronto: ninguém mais ouve os gritos da menininha. Isso mesmo, a MPB consegue romantizar até a pedofilia.
Não estou dizendo que toda a MPB é feita de imoralidades acobertadas por metáforas sobre a lua e o mar. Longe de mim generalizar. O que digo é que poucas esferas da cultura brasileira foram tão eficazes em blindar seus ídolos. A MPB criou um panteão onde a arte é sempre maior que o artista, e o artista é sempre maior que os erros. Ali, não há espaço para dúvida. Questionar seus integrantes (Caetano, Gil, Gal…) e principalmente Chico é como duvidar da chuva, do samba ou da feijoada. Você pode até não gostar, mas a culpa é sua.
Quanto à sua pessoa, nada tenho a declarar. Pode ser que Chico seja um ótimo sujeito. Pode ser que cante para os pássaros, abrace os netos e divida o guarda-chuva com desconhecidos. Não o conheço, nunca tomei café com ele, nunca o vi empurrando uma velhinha escada abaixo nem chutando um vira-lata. Mas tenho certeza de que, se Chico cometesse tais atrocidades, surgiria uma horda de defensores com explicações prontas. Afinal, quem precisa de mais um cão de rua quando se tem a poesia de “O Que Será”? E se a senhora em questão não conseguiu acompanhar o ritmo do gênio, é porque não merecia compartilhar a mesma calçada que ele.
O Brasil, esse país de extremos, onde se odeia com fúria e se idolatra com febre, precisa aprender a lidar com a opinião morna. Não gostar de algo não é um crime. E não gostar de Chico Buarque deveria ser tão permitido quanto não gostar de coentro: uma questão de paladar, não de caráter.
Aliás, se eu dissesse isso pessoalmente ao próprio Chico — “acho você superestimado” —, acho que ele responderia com elegância. Talvez até com humor. Talvez dissesse algo como: “Tudo bem, tem gente que também não gosta de Tom Jobim.” E seguiríamos tomando um café, civilizados. Porque artistas de verdade aceitam críticas. Quem não aceita são os apóstolos. Esses que, diante de uma crítica, não argumentam, exorcizam.
Felipe Attie