Sem vilões, todo herói é um sujeito normal vestindo collant
“Próximo!” gritou a balconista da farmácia aonde eu fui comprar insulina. Seu grito bateu no meu ouvido causando a mesma emoção do grito de gol numa final de Copa do Mundo. Afinal, eu estava há uns vinte minutos em pé, com meu filho no colo, aguardando para ser atendido. O problema não era a fila, que estava tão minúscula quanto a minha paciência. Mas sim, uma senhora que, justo naquela manhã, havia decidido ir à farmácia comprar todos os remédios necessários para passar o resto de sua vida.
Ela era uma criaturinha pequena, franzina e emburrada, que trajava um terninho que lembrava capinha de liquidificador. Mesmo distante, seu cheiro se mostrara um arqui-inimigo para minha rinite. A velha fedia a repartição pública. A tintura ruiva desbotada dos seus cabelos era desmascarada pela raiz grisalha, tornando sua cabeleira similar a um palito de fósforo que foi apagado antes da hora. Olhar para ela por quinze segundos era suficiente para fazer qualquer um questionar a ciência. Sua mão magrela e ossuda empunhava com firmeza a lista de remédios que se estendia parecendo um pergaminho medieval. Com a voz afiada e carregada de arrogância, ela recitava o nome dos remédios que deveriam ser capturados pelo farmacêutico e entregues a ela. Cada nome pronunciado sinalizava uma viagem de ida e volta do farmacêutico rumo às prateleiras. A dinâmica ganhou ar de gincana e qualquer um que estivesse assistindo a situação aguardaria pelo momento em que a velha gritaria: “Ponto para os meninos!”.
Então seu pergaminho chegou ao fim e eu pude escutar o chamado indicando que seria o próximo a ser atendido. Mas antes que eu pudesse comemorar, o barulho de algo grande e pesado desabando no chão cruzou a farmácia, acompanhado de um estridente grito de socorro que se chocou contra os meus ouvidos. Olhei para a fila do caixa e me deparei com um homem esparramado no chão. Rapidamente uma aglomeração se formou ao seu redor. Impulsionado pela mórbida esperança de presenciar uma morte diante dos olhos, me aproximei do local do incidente. Para o meu azar, o homem estava vivo. Meu filho permanecia no meu colo sem entender nada, apenas desfrutando da benção da ignorância.
O homem estava caído de barriga pra cima. Ao seu lado, a mulher que havia gritado socorro encontrava-se trêmula. Alguém cogitou chamar uma ambulância. Um funcionário tentava se comunicar com o homem que respondia com dificuldade. A velha jurássica, munida de sua cesta básica de remédios, permanecia imóvel e seu semblante deixava claro que a situação não a abalou. Enquanto todos tentavam ajudar de alguma forma, ela se mantinha rígida, com as sobrancelhas cerradas, examinando tudo ao seu redor.
“Ele escorregou!” disse ela. “Esse chão é muito liso!”
“Não foi não”, retrucou uma funcionária. “Ele desmaiou.”
“Esse chão é um perigo!” continuou ela, ignorando a mulher. “Semana passada eu quase escorreguei também! Escapei por pouco!”
Uma pena! Seria melhor se tivesse morrido!, esbravejei em pensamento. É incrível, eu nunca tinha visto aquela velha antes e já a odiava com todas as minhas forças.
“Eu desmaiei”, resmungou o homem. “Tudo apagou!”
“Se eu sou você”, disse ela, apontando para o chão “processava esse lugar!”
“Tudo apagou! Apagou!” insistia o homem.
“O senhor tá sentindo dor em algum lugar?”, perguntou o farmacêutico.
“Vê se ele bateu com a cabeça”, sugeriu alguém.
“A minha visão escureceu de repente”, questionou ele, tentando se levantar.
“O senhor é diabético?” perguntei.
“Sou.”
“O senhor tá desde que horas sem se alimentar?”
“Desde quatro da manhã.”
“O senhor tá tendo um ataque de hipoglicemia. Precisa de açúcar!”
Anos de diabetes me forneceram experiência suficiente pra diagnosticar um diabético só pelo olhar. É uma espécie de radar movido a aspartame.
“Você é médico?”, perguntou a velha jurássica em tom de descaso.
“Não. Sou diabético.”
“Ele também é?”, perguntou ela, apontando para o meu filho.
“Não”, respondi rispidamente. No fundo, eu sabia que ela estava apenas tentando construir uma ponde de comunicação entre nós. Mas não gostei de ouvir aquela criatura minúscula e peçonhenta se referindo ao meu filho. “Por favor, alguém pode me trazer uma lata de refrigerante?”
Rapidamente uma menina brotou ao meu lado segurando uma lata de Coca-Cola Zero.
“Por que zero?”, perguntei.
“Porque você disse que é diabético”, respondeu ela.
“Mas não é pra mim. É pra ele!”, disse, apontando para o homem caído.
“Mas ele também é diabético.”
“Eu sei, mas ele precisa de algo com bastante açúcar. Essa lata não serve, pode levar de volta.”
“Mas eu já abri.”
“Então fique com ela pra você.”
“Mas eu nem bebo refrigerante.”
Eu já me preparava para mandar a menina enfiar a lata no rabo quando a balconista surgiu, entregando-me uma lata de Pepsi.
Pedi para que colocassem o homem sentado e virei a lata em sua goela.
“Eu odeio esses refrigerantes!”, resmungou a velha, enquanto as últimas goladas viajavam da lata para a boca do homem.
Em poucos instantes ele estava de pé, apoiado no balcão da farmácia com o semblante revigorado.
“Muito obrigado”, agradeceu ele, apertando minha mão. “Nem sei o que seria de mim se você não tivesse aqui.”
“Não foi nada demais”, retruquei. “Também sou diabético. Tenho experiência na área.”
“Mas cuidado com esse chão”, exclamou a velha, intrometendo-se na conversa. “Semana passada...”
Virei de costas e a deixei falando sozinha. Voltei para a fila e finalmente fui atendido.
Na volta pra casa, caminhando com meu filho no colo, refleti sobre o incidente e confesso que tive o ego inflado pela satisfação de ter salvado a vida de alguém. Eu estava me sentindo um super-herói quando a imagem da velha jurássica poluiu minha mente e arruinou meu momento de glória. É incrível como algumas pessoas parecem ter talento para serem odiadas. Foram precisos poucos minutos ao seu lado para eu começar a desejar sua morte. Caso eu fosse um herói, ela seria minha arqui-inimiga. Porém, se não fosse toda a demora promovida por ela, eu não estaria na farmácia no momento do incidente e, provavelmente, o homem teria morrido. Ela foi um mal necessário. Fui forçado a reconhecer a importância da sua irritante existência e concluí que, sem vilões, todo herói é um sujeito normal vestindo collant.
É isso.